terça-feira, 2 de abril de 2013

Parte I - MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE MILÍCIAS


MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE MILÍCIAS, romance de Manuel Antônio de Almeida, foi publicado originalmente em folhetins no Correio Mercantil do Rio de Janeiro, entre 1852 e 1853, anonimamente. O livro foi publicado em 1854 e no lugar do autor constava um brasileiro.
A narrativa de Memórias de um sargento de milícias, de estilo jornalístico e direto, incorpora a linguagem das ruas, classes média e baixa, fugindo aos padrões românticos da época, onde os romances retratavam os ambientes aristocráticos. A experiência de ter tido uma infância pobre contribuiu para que Manuel Antônio de Almeida desenvolvesse a sua obra.
O espaço físico apresentado na obra é o meio urbano brasileiro do século XIX. A história se passa no Rio de Janeiro e descreve seus principais pontos, como igrejas, principais ruas, mas descreve também pontos bem à margem da sociedade, como acampamentos de ciganos e bares. A narrativa é feita em terceira pessoa (mas há passagens do livro em que o foco narrativo passa da terceira pessoa para a primeira pessoa), o que torna mais completa a caracterização das personagens e seu foco secundário vai variando.
O autor utiliza diálogos que retratam a linguagem dos personagens. Esse tipo de narrativa faz com que o texto fique mais interessante, pois ficam evidentes as ironias usadas pelo narrador.
Manuel Antônio de Almeida utiliza uma linguagem que se aproxima da jornalística, o que tornam claros e objetivos os seus textos. Outro aspecto é a utilização de personagens comuns na época, como o barbeiro, a parteira, o major, tornando, assim, a história mais próxima do leitor.
A obra é muito importante por ser de transição do Romantismo para o Realismo e por ser uma crônica de costumes. Além disso, é usada metalinguagem (explicar sobre o próprio processo narrativo), técnica do leitor incluso (conversa com o leitor) e digressão (interromper a narrativa para que o narrador faça um comentário sobre assunto paralelo com o diagrama).
Memórias de um sargento de milícias é uma obra romântica, que, consequentemente, apresenta algumas características típicas do movimento. A obra, porém, é um romance urbano, que desenvolveu temas ligados à vida social. A história apresenta os exageros sentimentais comuns à maioria das obras românticas.
Fazendo o uso da ironia, o autor deixa perceber que sua intenção era divertir o leitor com os problemas sociais de sua época. Um exemplo claro está na passagem contida no capítulo XIV, que se percebe ironia do narrador ao referir-se ao padre. 
“(...) era nada menos do que a cigana, objeto dos últimos cuidados do Leonardo, com que S. Revma. vivia há certo tempo em estreitas relações (...)
Na passagem acima, a ironia está no uso da expressão formal de tratamento, S. Revma., contrastando com a atitude imprópria para um padre, que, no caso, é manter relações íntimas com a cigana.
O livro abandona a linguagem metafórica, a mulher e o amor não são idealizados, como em outras obras pertencentes ao Romantismo. Em algumas partes o autor chega mesmo a ironizar o Romantismo. Por exemplo:
“tratava-se de uma cigana; o Leonardo a vira pouco tempo depois da fuga da Maria, e das cinzas ainda quentes de um amor mal pago nascera outro que também não foi a este respeito melhor aquinhoado; mas o homem era romântico, como se diz hoje, e babão, como se dizia naquele tempo.”
O final feliz de Luisinha e Leonardo, porém, é uma característica tipicamente romântica. Pode-se ver como o amor transforma a vida de Luisinha:
“Desde o dia em que Leonardo fizera a sua declaração amorosa, uma mudança notável se começou a operar em Luisinha, a cada hora se tornava mais sensível a diferença tanto do seu físico como do seu moral. Seus contornos começavam a arredondar-se; seus braços, até ali finos e sempre caídos, engrossavam-se e tornavam- -se mais ágeis; suas faces magras e pálidas, enchiam-se e tomavam essa cor que só sabe ter o rosto da mulher em certa época da vida; a cabeça, que trazia habitualmente baixa, erguia-se agora graciosamente; os olhos, até aqui amortecidos, começavam a despedir lampejos brilhantes; falava, movia-se, agitava-se. A ordem de suas idéias alterava-se também; o seu mundo interior, até então acanhado, estreito, escuro, despovoado, começava a alargar os horizontes, a iluminar-se, a povoar-se de milhões de imagens, ora amenas, ora melancólicas, sempre porém belas.”
Nota-se, portanto, que, apesar de romântico, ao longo da trama vários aspectos do movimento são criticados e diversas vezes satirizados. O livro foge às diversas características do estilo romântico, o relacionamento amoroso não é idealizado, Leonardo não se mostra corajoso e íntegro, como nos padrões do herói romântico. Mostra-se vagabundo, irresponsável, um anti-herói. Ele não é um vilão, mas não representa um modelo de comportamento; é uma pessoa comum. O final da história, fugindo do estilo romântico já conhecido com tragédias, Leonardo e Luisinha se casam e vivem felizes para sempre.
Manuel Antônio de Almeida faz referências à mitologia grega e cita personagens reais, como o major Vidigal. Ele apresenta pequenas histórias no mesmo contexto, histórias "perpendiculares" à trama principal. Enfim, ele faz de tudo para prender a atenção do leitor para o próximo capítulo, criando assim um estilo próprio, um romantismo irônico e crítico à sociedade vigente na época.
Apesar de o livro ter sido escrito no século XIX, época do Romantismo, ele não pode ser classificado exatamente como uma obra do Romantismo, e sim como uma obra excêntrica. Os fatos que comprovam que tal obra é excêntrica são a ausência de maniqueísmo* e personagens idealizados. Outro fator é a existência de metalinguagem, bastante usada, por exemplo, por Machado de Assis, que viveu no Realismo. Por tais motivos, fica inviável classificá-la como uma obra do Romantismo, apesar de ser escrita na época em que tal movimento literário perdia forças e dava espaço ao Realismo.
Antonio Candido - estudioso da literatura brasileira e estrangeira, que possui uma obra crítica extensa, respeitada nas principais universidades do Brasil - afirma que as personagens de Memórias de um Sargento de Milícias são todas planas, ou seja, as personagens envolvem-se nos acontecimentos, mas permanecem idênticas, não apresentando nenhuma alteração em seu modo de ser.
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*Qualquer doutrina baseada, como a de Maniqueu, na coexistência dos dois princípios opostos: o do bem e o do mal.



Personagens

Leonardo ou Leonardinho - o anti-herói ou herói picaresco do romance, vadio, malandro, que adora fazer estripulias e criar problemas. Mulherengo, quase perde seu amor por ser inconsciente. É criado pelo padrinho, já que os pais se separam e não têm paciência para lhe suportar as traquina­gens. Chega a ser preso, torna-se granadeiro e Sargento de Milícias. Casa-se e torna-se assentado.
Leonardo Pataca - pai de Leonardo, acaba casado com Chiquinha, depois que abandona o filho com o compadre. 
Maria da Hortaliça - mãe do personagem, portuguesa, trai o Pataca e foge com outro para Portugal. 
Luisinha - moça com a qual Leonardo se casa. Em princípio é desengonçada e estranha, depois melhora. Casa-se com José Manuel, por influência da tia, arran­jando um marido que só deseja seus bens. É órfã. Fica viúva e une-se a Leonardo. 
Vidinha - mulata jovem, bonita e animada, toca viola e canta modinhas. Cativa Leonardo, que vive em sua casa por algum tempo. 
O Compadre - barbeiro de profissão, cria Leonardo, protege-o e acaba deixando-lhe uma herança que surrupiou do comandante de um navio. 
A Comadre - defende e acompanha Leonardo em qualquer circunstância. Adora o afilhado. 
D. Maria - doida por uma demanda judicial, ganha a guarda de Luisinha, quando ela perde os pais. 
José Manuel - salafrário e calculista, casa-se com Luisinha por dinheiro e morre.
Major Vidigal - militar que persegue Leonardo, até conseguir integrá-lo às forças milicianas. Calcado em uma figura real. 
Chiquinha - casa-se com Leonardo Pataca. É filha da Comadre.
Tomás da Sé - amigo de Leonardo.
Cigana - desperta paixão em Leonardo Pataca (o pai).
Maria Regalada - ex-amante do Major Vidigal.

Há ainda, o toma-largura, sua esposa, as viúvas...

Denotação

Sargento – Praça graduada de qualquer corporação militar, que na escala hierárquica se situa entre o cabo e o subtenente ou suboficial.

Milícias – Guarda nacional; corpos de tropas de segunda linha.

Síntese 
Em síntese, o enredo de Memórias de um Sargento de Milícias é tecido com muitas peripécias e intrigas, que não deixam, ainda hoje, de entreter e prender o leitor.
Pode resumir-se na história da vida de Leonardo filho de dois imigrantes portugueses, a sábia Maria da Hortaliça e Leonardo, “algibebe” - mascate - em Lisboa e depois meirinho* no Rio do tempo do Rei D. João VI:
Nascimento do “herói”, sua infância de endiabrado, suas desditas de filho abandonado, mas sempre salvo de dificuldades pelos padrinhos (a parteira e um barbeiro); sua juventude de valdevinos (malandro); seus amores com a dengosa mulatinha Vidinha; suas malandrices com o truculento Major Vidigal, chefe de polícia; seu namoro com Luisinha; sua prisão pelo major; seu engajamento, por punição, no corpo de tropa do mesmo major; finalmente, porque os fados acabaram por lhe ser propícios e não lhe faltou a proteção da madrinha, tudo tem “conclusão feliz”: promoção a sargento de milícias e casamento com Luisinha.
Para que se tenha uma ideia mais precisa do conteúdo do livro no que se refere ao enredo, será transcrito aqui o resumo adaptado elaborado pelo Prof. José Rodrigues Gameiro em estudo sobre Memórias de um Sargento de Milícias.

A obra está dividida em duas partes: a primeira com vinte e três capítulos e a segunda com vinte e cinco. Alguns livros possuem tal divisão, outros têm a sequenciação contínua dos capítulos.
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*Funcionário que o rei nomeava para governar, com ampla jurisdição, um território ou comarca; oficial de diligências.

Primeira Parte 


I – Origem Nascimento e Batizado. A novela se abre com a frase “Era no tempo do rei”, que situa a estória no século XIX, no Rio de Janeiro. Narra a vinda de Leonardo-Pataca (o pai) para o Brasil. Ainda no navio, namora com uma patrícia, Maria da Hortaliça, sabia portuguesa. Daí resultou o casamento e... “sete meses depois teve a Maria um filho, formidável menino de quase três palmos de comprido, gordo e vermelho, cabeludo, esperneador e chorão; o qual, logo depois que nasceu, mamou duas horas seguidas sem deixar o peito”. Esse menino é o Leonardo, futuro “sargento de milícias” e o “herói” do livro. O capitulo termina com o batizado do garoto, tendo a “Comadre” por madrinha e o barbeiro ou “Compadre” por padrinho, personagens importantes da estória.

II - Primeiros Infortúnios. Leonardo-Pataca descobre que Maria da Hortaliça, sua mulher, o traía com vários homens; dá-lhe uma surra e ela foge com um capitão de navio para Portugal. O filho, depois de levar um pontapé no traseiro, é abandonado e o padrinho se encarrega dele.

III - Despedida às Travessuras. O padrinho, já velho, e sem ter a quem dedicar sua afeição, ficou caído pelo garoto, concentrando todos os seus esforços no futuro de Leonardo e desculpando todas as suas travessuras. Depois de muito pensar, resolveu que ele seria padre.

IV - Fortuna. Leonardo-Pataca apaixonou-se por uma cigana que também o abandona. Para atraí-la novamente, recorre a feitiçarias de um caboclo velho e imundo que morava num mangue. Na última prova, à noite, quando estava nu e coberto com o manto do caboclo, aparece o Major Vidigal...

V - O Vidigal. Este capítulo descreve o Major - “um homem alto, não muito gordo, com ares de moleirão; tinha o olhar sempre baixo, os movimentos lentos, e a voz descansada e adocicada”. Era a polícia e a justiça da época, na cidade. Depois de obrigar todos que se achavam na casa do caboclo a dançar, até não aguentarem mais, chicoteia-os e leva Leonardo para a “Casa da Guarda”, espécie de depósito de presos. Depois de visto pelos curiosos, é transferido para a cadeia.

VI - Primeira Noite Fora de Casa. Leonardo filho vai acompanhar uma “Via Sacra” de rua”, muito comum naquela época, e junta-se a outros moleques. Acabam passando a noite num acampamento de ciganos. Descreve-se a festa e a dança do fado. De manhã, Leonardo pede para voltar a casa.

VII - A Comadre. Era a madrinha de Leonardo - “uma mulher baixa, excessivamente gorda, bonachona, ingênua ou tola até certo ponto, e finória até outro; vivia do oficio de parteira, que adotara por curiosidade e benzia de quebranto...”. Gostava de ir à missa e ouvir o cochicho das beatas. Viu a vizinha do barbeiro e logo quis saber do que é que ela falava.

VIII - O Pátio dos Bichos. Assim era chamada a sala onde ficavam os velhos oficiais a serviço de El-Rei, esperando qualquer ordem. No meio deles, estava um Tenente-Coronel a quem a Comadre vai pedir para interceder junto a El-Rei para soltar Leonardo-Pataca.

IX - O Arranjei-me do Compadre. O autor conta-nos como o barbeiro conseguiu arranjar-se na vida, apesar de sua profissão pouco rentável: improvisou-se de médico, ou melhor, “sangrador”, a bordo de um navio que vinha para o Brasil. O Capitão moribundo entregou-lhe todas as economias para que as levasse à sua filha (do Capitão). Quando chegou a terra, ficou com tudo e nunca procurou a herdeira.

X - Explicações. O Tenente-Coronel interessara-se por Leonardo porque, de certa forma, ele o havia livrado de certa obrigação: seu filho, um desmiolado, é que havia infelicitado a tal de Mariazinha, a Maria da Hortaliça, ex-mulher de Leonardo. Por isso empenha-se e, por meio de outro amigo, consegue que El-Rei solte Leonardo.

XI - Progresso e Atraso. Este capítulo é dedicado às dificuldades que o padrinho encontra para ensinar as primeiras letras ao afilhado e às implicâncias da vizinha. A seguir vem um bate-boca entre os dois, com o menino arremedando a velha, e com grande satisfação para o barbeiro que se julga “vingado”.

XII - Entrada para a Escola. É uma descrição das escolas da época. Aborda a importância da palmatória e nos conta como o novo e endiabrado aluno leva bolos de manhã e à tarde.

XIII - Mudança de Vida. Depois de muito esforço e paciência, o padrinho convence ao afilhado de voltar para a escola, mas ele foge habitualmente e faz amizade com o coroinha da Igreja. Pede ao padrinho, e este acede, para também ser coroinha. Pensava assim o barbeiro que seria meio caminho andado para se tomar padre. Como coroinha, aproveitou-se dessa função para jogar fumaça de incenso na cara da vizinha e derramar-lhe cera na mantilha. Vingava-se assim dela.

XIV - Nova Vingança e Seu Resultado. Neste capitulo, aparece o “Padre Mestre de Cerimônias”, que, embora de um exterior austero, mantinha relações com a cigana, a mesma que abandonara Leonardo-Pataca e fora causa de sua função. No dia da festa da Igreja da Sé, o Mestre de Cerimônia prepara-se orgulhosamente para proferir seu sermão. O menino Leonardo, encarregado de avisar-lhe a hora do sermão, informa-lhe que será às 10 horas, quando na verdade devia ser às 9. Um capuchinho* italiano, para cooperar, e porque o pregador não chegava, começou a homilia. Depois de algum tempo, chega o Mestre, furioso, e corre para o púlpito também. Após um bate-papo com o religioso, toma o lugar dele e continua o sermão. O resultado foi o sacristão ser despedido. *Religioso de um ramo da Ordem de São Francisco.

XV - Estralada. Leonardo-Pataca, sabendo que o Mestre de Cerimônias é que lhe tirara a cigana e que este iria ao aniversário dela, contratou Chico-Juca para criar confusão na festa. Avisou antecipadamente o Major Vidigal, que prende todo mundo, inclusive o Padre, e os leva para a “Casa da Guarda”.

XVI - Sucesso do Plano. O Mestre de Cerimônias, com o escândalo, foi obrigado a deixar a cigana, voltando para Leonardo, que recebe as censuras da Comadre.

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